André Spitzmann Jordan completa hoje 90 anos. Referência nacional e mundial da Hotelaria e Turismo, já quase tudo se escreveu sobre ele. E digo “quase” pois há uma importantíssima área e período da sua vida que é muito pouco falada, o período aproximadamente entre 1954 e 1964 em que viveu no Rio de Janeiro e pôde testemunhar em directo o surgimento da bossa nova. Uma paixão que se prolongou até hoje, a juntar ao seu conhecido gosto musical eclético. Em conversa recente, na casa de Belas, com o belo jardim projectado por uma colaboradora do famoso arquitecto paisagista brasileiro Burle Marx, resolvemos colocar-lhe algumas questões sobre este tema, e de que resultou uma deliciosa viagem pela memória musical e da vida no Rio de Janeiro, mas não só, dos anos 50 e 60.

André, muito obrigado por me receber aqui em Belas. Gostaria de ter um bate-papo consigo acerca desse fantástico e riquíssimo período do “antes” e do “durante” do nascimento da bossa nova. Por onde quer começar?
Tenho de começar pela Polónia, onde nasci em 1933 (Lviv, hoje Ucrânia). Na véspera da invasão da Polónia (1 de Setembro de 1939), a minha mãe Faustina insistiu na necessidade de sair rapidamente da Polónia, o que sucedeu. Seguimos de carro para Bucareste e de seguida para Itália (Veneza e depois Roma). Em Roma, na Embaixada dos Estados Unidos, a minha mãe conseguiu vistos para toda a família poder viajar para a América. De Roma fomos a Paris e daqui para Lisboa. Em Lisboa, o meu pai (Henryk) fez rapidamente muitos amigos, como Cupertino de Miranda e Tomé Feteira. Nessa ocasião, um jornalista de quem não me recordo do nome, convenceu o meu pai a ir para o Brasil. Ficámos apenas 6 meses em Portugal, numa casa alugada no Estoril, tendo eu estudado no St. Julian”s em Carcavelos. Chegámos ao Rio de Janeiro em 1940 e aí ficámos, com uma passagem por Buenos Aires, tendo depois o meu pai falecido já nos anos 60.

Porque é que se encantou com o RJ? Houve mesmo um “Rio que passou na minha vida”? [referência ao livro de André com esse título, certamente inspirado pelo samba de Paulinho da Viola]?
Absolutamente! Qualquer pessoa que passe mais de um ano no Brasil, fica brasileiro. Há uns anos atrás fui a Itália, a um hotel junto ao Lago Como, participar de um encontro com outros empresários de vários países. Na mesa de almoço, todos tinham vivido e trabalhado algum tempo no Brasil. Passado umas horas estávamos todos a cantar bossa nova!

Qual foi, no Rio, a sua primeira influência musical?
As músicas de Carnaval, talvez ainda antes do “samba-canção”, eu tinha então 7-8 anos. Mais tarde, já adolescente sim o samba-canção; recordo-me do Orlando Silva, Nelson Gonçalves. E das cantoras como Emilinha Borba, Dolores Duran e outras, mas a minha mãe, um pouco antes e também mais tarde, levava-me principalmente aos recitais e concertos de música erudita, pois estávamos em Nova Iorque onde ela conheceu Heitor Villa-Lobos. E frequentávamos os festivais de música como Tanglewood, com a orquestra de Boston dirigida pelo maestro Koussevitsky, que tinha como seu assistente o maestro brasileiro Eleazar de Carvalho; isso me impressionou muito. De qualquer modo, eu fazia uma vida bastante solitária, e lia imenso, noite fora. Os meus pais divorciaram-se nessa época. Entretanto chegou a Nova Iorque um rapaz, filho de um sócio do meu pai em São Paulo, que me disse que eu tinha de ouvir be bop, Charlie Parker, pois ele achava que o que eu escutava era “careta”. E realmente eu, então com 16 anos, saía de fato e gravata e tentava entrar nos clubes de jazz, cuja entrada era permitida a maiores de 21 anos, como o famoso Royal Roost, e cuja orquestra era dirigida pelo Billy Eckstein. Em finais de 40 e inícios dos anos 50, comecei então a prestar atenção à música popular americana, não propriamente ao jazz (nesse momento). Na Broadway havia três cinemas e nos intervalos dos filmes passavam números musicais com Benny Goodman e Tommy Dorsey ou as cantoras Peggy Lee e Doris Day. Frank Sinatra era muito popular, quase um “deus”, e o empresário chegava a contratar meninas para desmaiarem nos seus shows. Foi o período do “Jazz at the Philarmonic” de Norman Granz, um período fascinante para mim. Mas continuava a frequentar os musicais da Broadway com a minha mãe; My Fair Lady estreou nessa altura e a procura era tanta que chegavam a vender bilhetes a 1000 dólares, mas por sorte conseguimos dois bilhetes a preço regular! Também beneficiei dos magníficos concertos para jovens do Leonard Bernstein, programa que mais tarde passou para a televisão. E foi quando comecei a colecionar discos, de todos os géneros mas de qualidade, numa loja da etiqueta discográfica Liberty Music.

E o regresso ao Brasil?
Regresso ao Brasil com o meu pai, por volta de 1953 e vamos viver para Copacabana, um apartamento perto do Copacabana Palace, e de frente para o mar, numa esquina da Rua Duvivier, onde uns anos mais tarde seria o famoso “Beco das Garrafas” com quatro famosos bares conhecidos como “inferninhos”, Ma Griffe, Bacará, Little Club e Bottle”s. No início, um quase desconhecido Sérgio Mendes tocava lá, mas sem grande sucesso. Mas uma noite, passeando com um amigo, passámos em frente de um famoso bar chamado Cantina do César (hoje Adega do Cesare, na Rua Joaquim Nabuco) e escutámos um som de piano que nos encantou: era Johnny Alf que actuava. Foi a primeira vez que escutei algo de novo, que iria ser mais tarde a bossa nova. Johnny Alf foi um dos precursores. E foi também nessa época que conheci Ronaldo Bôscoli, jornalista e letrista de canções, grande parceiro de Roberto Menescal, e músicos como Lúcio Alves e Dick Farney (Farnésio Dutra), que já conhecia de gravações e da TV nos Estados Unidos. Dick regressa ao Brasil, não tendo ficado nos Estados Unidos apenas por timidez, pois teria tido lá uma excelente carreira. Mas no Rio de Janeiro fundou o Farney-Sinatra Club que foi muito popular.Fale do “Clube da Chave”?
Em meados de 50, diversos músicos e outras personalidades costumavam encontrar-se nas esplanadas de diversos restaurantes da Avenida Atlântica, tendo assim surgido uma tertúlia carioca. No entanto, as personalidades eram frequentemente assediadas para obter autógrafos, pelo que se tentou encontrar um espaço mais recatado, e assim surgiu o “Clube da Chave”. Apesar de eu ser 10 anos mais novo do que o mais novo deles, aceitaram-me como membro (fiquei com o número 45). A ideia pertenceu a Humberto Teixeira, advogado e parceiro de Luiz Gonzaga (“Asa Branca”), e dos seus 50 membros faziam parte pessoas como Dorival Caymmi, Tom Jobim, Vinicius, Baden Powell. Humberto Teixeira consegue encontrar um salão que era parte do extinto “Cassino Atlântico”, que passou a ser a sede do Clube, onde cada membro possuía uma chave para acesso. Havia um pequeno palco com um piano. Na parede o caricaturista Nássara fez as imagens dos 50 sócios. Com o meu pai ocupado em outros locais, eu passava lá as noites. Entre as diversas iniciativas, organizámos uma vez uma homenagem a Ary Barroso, em que praticamente todos os artistas que tinham gravado Ary Barroso, actuaram e de graça. No final, Ary sentado ao piano contava as estórias das suas famosas canções. Numa noite, um senhor aproximou-se de mim e disse que tinha uma filha que cantava e gostaria de saber se ela poderia actuar no Clube. A proposta foi aceite e foi assim que Maysa se estreou como cantora. Aliás a partir dessa altura muitas mulheres, como Dolores Duran, passaram a frequentar o Clube que não era exclusivamente masculino. Passou então a ser conhecido como o “melhor local de pesca” da cidade. Mas ao fim de dois anos, por falência, o Clube fechou. Uma grande perda. Outro grande músico dessa época no Rio era João Donato que também desenvolveu uma carreira de grande sucesso nos Estados Unidos. Gostava muito dele, como músico e como pessoa.

“Em meados de 50, diversos músicos e outras personalidades costumavam encontrar-se nas esplanadas de diversos restaurantes da Avenida Atlântica, tendo assim surgido uma tertúlia carioca.”

E João Gilberto?
O primeiro encontro dá-se no “Clube da Chave”. O Lúcio Alves, acompanhado pelos “Garotos da Lua” foi lá fazer um show. Mas eu reparei na batida do rapaz do violão. Quando pararam, fui falar com ele. Ficámos logo amigos, me encantei com a sua inteligência e a forma de tocar dele e organizei o seu primeiro show no Copacabana Palace. Tinha hábitos muito bizarros, levantava-se às 11 da noite, comia um bife, e ligava-me ficando a conversar comigo horas seguidas. Uma vez em 1962, estava eu em Buenos Aires, ele apareceu com a mulher Astrud; estava um frio desgraçado e ele apenas com uma simples camisa. Emprestei-lhe uma camisola e ele foi actuar num bar chamado “676”, cujo dono era Astor Piazzola, com “Os Cariocas” (de que saiu um LP). Uma vez em casa dele ele pediu-me para eu cantar uma canção; eu disse, João, mas você é que é o cantor, eu não canto nada! Vá lá, eu acompanho. No final tive a sensação de cantar como Frank Sinatra. Qualquer pessoa, até um mudo (!) pode cantar bem, desde que acompanhado pelo João Gilberto. Depois de se separar de Astrud Gilberto (que na sequência da gravação do LP Getz-Gilberto foi viver com Stan Getz), ficou a viver com a Miúcha (irmã de Chico Buarque).

Conheceu certamente Vinicius de Moraes e Tom Jobim; como se deu o encontro dos dois no famoso bar Villarino (ainda em actividade)?
Vinicius tinha escrito uma peça chamada Orfeu da Conceição que ganhou um Prémio UNESCO. Pediu em 1956 ao Lúcio Rangel se poderia indicar um músico para compôr para a peça. Tom era quase desconhecido, tocava em bares (os tais “inferninhos”) para ganhar um dinheirinho para sustentar a família e pagar a renda da casa. Eu ia muito a esses bares para o escutar. Era um pianista e músico talentoso, com escola clássica, mas sempre com pouco dinheiro. Depois ficou famoso e rico, claro. Até hoje tem duas canções que são das mais gravadas mundialmente, Garota de Ipanema e Insensatez. O Vinicius explicou o projecto ao Tom, ao que ele perguntou: e tem um dinheirinho aí? Ele corria atrás da renda da casa. Vinicius estava com a Lila Bôscoli, que depois… ficou comigo. Ele era um sedutor mas também um verdadeiro destruidor de casamentos, impenitente, tinha mesmo gosto nisso. Mas não ficou nada contente por eu ter ficado com a mulher dele, apesar de já estarem separados. Vinicius era um grande poeta, letrista e personagem essencial na formação da bossa nova, mas também teve um papel essencial ao colocar os negros como figuras centrais da cultura da época.

André, você sentiu o impacto de Chega de Saudade em 1958-59?
Sim, claro. Eu tive um papel na promoção da bossa nova nessa fase inicial, levando os músicos a casa de pessoas influentes e também promovendo através de jornais e revistas como O Cruzeiro e Manchete. Havia nessa altura muita resistência em relação à bossa nova por parte das gerações anteriores, como Ary Barroso ou Antônio Maria. No Cruzeiro há uma foto que ficou famosa, tipo escada, com Ary, Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra, e Tom. Era a “velha bossa”, mas para além de não estarem convencidos, havia ciúmes.

Newton Mendonça parceiro inicial do Tom mas que morreu muito cedo?
Não conheci. Grande compositor.

E André Midani?
Sim, conheci, era francês mas de origem síria, tendo vindo de Paris para o Rio de Janeiro em 1955. Foi presidente da Philips no Brasil e mais tarde da WEA. Há uns anos fui almoçar a um restaurante no Leblon e encontrei-o. Teve muita influência na divulgação da bossa nova, de que era grande fã. Faleceu recentemente em 2019 com 87 anos.

E conheceu Roberto Menescal, neste momento o mais “antigo” pai da bossa nova, vivo?
Só nos convívios musicais mas eu era muito fã dele. Outro pouco falado foi o pianista Luizinho Eça. Morreu muito novo. Tocava com o Tamba Trio. Estes trios instrumentais eram muito populares no Rio dos anos 60, havia também o Zimbo Trio do Amylton Godoy.

Lembra-se dos shows na PUC e na Fac. Arquitectura, no início de 60?
Sim, foram muito importantes esses shows. Norma Bengell, atriz e uma das participantes como cantora (embora não fosse grande cantora), era contemporânea da cantora Odette Lara, que gravou discos com Vinicius. Conheci a Norma em garota. Na Fac de Arquitectura, na Urca/ Praia Vermelha tem uma estátua de Chopin que meu pai doou a eles. Minha mãe ficou com uma réplica oferecida pelo escultor. Nessa época também fui muitas vezes a casa de Bené Nunes, pianista e dinamizador de ricas tertúlias musicais; um óptimo rapaz que tinha uma banda que tocava em festas. Tom e outros foram lá muito. Também conheci o apartamento da Nara Leão na Avenida Atlântica, e era muito amigo da irmã Danuza que morreu recentemente. O pai, Dr. Jairo leão, era nosso cliente, comprou-nos alguns apartamentos.

Em Novembro de 1962 realizou-se o grande concerto de bossa nova no Carnegie Hall; sei que há uma curiosa estória relacionada com este show.
Em 1962 eu estava na Argentina, trabalhando numa empresa do meu pai. Ele era sócio e amigo do principe Stanislas Radziwill, diplomata polaco casado com Lee Bouvier, irmã de Jacqueline Kennedy. O meu pai telefonou-me e disse: vai ao Rio, compra os discos todos de bossa nova, pega um avião e vai a Nova Iorque entregar à Lee. E assim fiz. Cheguei a Nova Iorque, liguei para a suíte dela no Hotel Carlisle, subi e ela estava com a Jackie. Coloquei os discos no gira-discos e fui explicando a elas. Era resultado do impacte do show no Carnegie Hall, a que assistiram imensos músicos de jazz como Miles Davis e Dizzy Gillespie, assim como Aretha Franklin. Stanislas Radziwill foi pouco depois parceiro do meu pai em Oeiras no empreendimento Bairro Augusto de Castro. Voltei de Buenos Aires ao Brasil em 1967 quando o meu pai morreu. Fui depois, sempre em trabalho, aos Estados Unidos, Bahamas, Paris e Lisboa, em 1971, onde me encantei com o Algarve e o local da futura Quinta do Lago.

“O presidente Juscelino Kubitschek, popularmente conhecido como “JK”, era muito dinâmico e com ideias, mas de certo modo megalómano. Era também conhecido como o “presidente bossa nova” pois foi durante a sua Presidência que surgiu e se desenvolveu a bossa nova.”

André, para terminar, como caracterizaria o período 1955-64 no Brasil?
Foi muito importante. O presidente Juscelino Kubitschek, popularmente conhecido como “JK”, era muito dinâmico e com ideias, mas de certo modo megalómano. Era também conhecido como o “presidente bossa nova” pois foi durante a sua Presidência que surgiu e se desenvolveu a bossa nova. O Brasil moderno é dessa altura, na música, no desporto, na arquitectura com Oscar Niemeyer e a construção de Brasília. E da tenista Esther Bueno, por muitos considerada a maior atleta feminina brasileira, com numerosos prémios internacionais como Wimbledon e Roland Garros. Nessa época, havia cinco tenistas profissionais no Brasil. Os brasileiros têm um extraordinário talento. Pela primeira vez realiza-se o concurso Miss Brasil, ganho por Marta Rocha, que chegou a concorreu a Miss Universo e ficado em 2.º lugar. A bossa nova continua a ter muita importância para mim, é música eterna, mundial. A sua influência da batida do violão, estende-se ao jazz, e ao cinema, entre outras áreas.

Fonte: Diário de Notícias